Por Érika Alfaro de Araújo, autora de Mulheres em Campo: Gênero no Jornalismo Esportivo Brasileiro
O futebol feminino foi proibido por lei durante quase quarenta anos no Brasil. Mulheres envolvidas com o esporte foram parar na cadeia e sofreram com campanhas intensas de difamação. Na década de 1980, a prática profissional da modalidade por mulheres foi vedada pelo Conselho Nacional de Desportos. No Torneio Internacional Feminino da China, organizado pela Fifa em 1988, a equipe brasileira que disputou a competição praticamente se conheceu no avião, indo para a Ásia, e usou as camisas e os calções do time masculino porque não havia uniforme para elas. Em 2001, a Federação Paulista de Futebol estabeleceu a beleza como requisito básico para selecionar as atletas que poderiam participar do campeonato estadual – cabelos longos, roupas justas e maquiagem se tornaram exigências. Em 2020, no contexto da pandemia de Covid-19, jogadoras permaneceram em clubes em troca de vaga no alojamento e de alimentação e foram dispensadas de suas funções por cobrarem pagamentos.
Tais fatos são apenas alguns dos que marcaram a trajetória do futebol de mulheres em território nacional. Foram diversas as tentativas de impedir o desenvolvimento da modalidade, muitas das quais, de fato, surtiram efeito. Nos clubes, os times femininos foram sinônimos de projetos abandonados durante anos até a obrigatoriedade imposta por entidades como as Confederações Sul-Americana e a Brasileira de Futebol (Conmebol e CBF, respectivamente). Até os dias atuais, o amadorismo é comum, e muitas jogadoras precisam manter outros empregos para terem o suficiente para se sustentarem.
Na seleção brasileira, a falta de estrutura foi alvo de reivindicações em diversas oportunidades. Em 2007, quando o time foi vice-campeão da Copa do Mundo, em um feito histórico e inédito, as jogadoras exibiram, no gramado, uma faixa que dizia: “Brasil: precisamos de apoio”. O grupo, que tinha nomes como Marta, Formiga e Cristine, enviou à CBF uma carta que, entre outros pontos, pedia clareza nas premiações (uma vez que desconheciam os valores que cabiam a cada uma delas em cada campeonato), reajuste nos pagamentos de diárias, alimentação e suplementação alimentar adequadas, bem como a possibilidade do uso da academia no período dos treinamentos e das competições.
No jornalismo, o esporte feminino, quando presente, tornou-se pauta menor. A imprensa especializada não apenas refletiu e compactou com os preconceitos e as desigualdades de cada período que geraram impactos profundos no futebol feminino, como também ajudou a construir e a disseminar mecanismos de discriminação com base no gênero.
A história do futebol de mulheres, durante muito tempo apagada e negligenciada, coloca em evidência as desigualdades de gênero que se replicam nos mais diversos espaços da sociedade brasileira. A luta de diversas figuras femininas no esporte, desde jogadoras até treinadoras, torcedoras, dirigentes, jornalistas, árbitras ou bandeirinhas, caminha lado a lado com as reivindicações feministas que buscam equidade.
Embora as proibições estejam no passado, as batalhas no futebol feminino seguem dentro e fora dos campos. Na Copa do Mundo da França, em 2019, foi a primeira em que a Nike, empresa fornecedora de materiais esportivos da seleção, lançou uma linha exclusiva para as mulheres do Brasil. Se na primeira vez em que as brasileiras participaram da Copa, em 1991, elas receberam os uniformes utilizados pelo time masculino, em 2015, a seleção feminina teve uma camisa projetada apenas para ela. O uniforme 2 azul foi usado na competição mundial no Canadá, mas não comercializado para o público. Com isso, em 2019, a empresa lançou uma linha, com camisa, calção e outros materiais, especialmente para o grupo feminino, a qual foi comercializada. Também naquele ano, a Rede Globo transmitiu, em televisão aberta, os jogos do mundial pela primeira vez na história. De acordo com os dados divulgados pela Fifa em seu relatório oficial Global Broadcast and Audience Report, a audiência sem precedentes chegou a 1,12 bilhão de pessoas se somados os números da televisão e da internet. Quando isolamos os dados televisivos, segundo divulgou a entidade, 993,5 milhões de telespectadores assistiram aos jogos pela telinha. Ao redor do mundo, a média de audiência das partidas foi de 17,27 milhões, o que representa mais do que o dobro do índice de 2015 (de 8,39 milhões).
Em 2023, ano em que o mundial se realiza na Austrália e na Nova Zelândia entre 20 de julho e 20 de agosto, teremos a maior Copa do Mundo da história – serão 32 seleções, o maior número de equipes que já jogou o torneio. Para a nona edição, a Fifa anunciou que todas as 736 jogadoras presentes na competição terão uma premiação individual mínima garantida. De acordo com a Federação, o pagamento será realizado diretamente às atletas, em um montante que representa mais que o dobro do salário médio de uma profissional do futebol em 2022. No cenário nacional, a CBF tornou pública a equiparação dos pagamentos feitos a homens e às mulheres das Seleções Brasileiras Principais. A decisão inédita aplica às atletas os mesmos valores de diárias pagas aos jogadores durante os períodos de convocação.
Tais avanços, que aparecem aos poucos ao longo dos anos, são resultados da resistência e da luta de diversas personagens que marcaram a modalidade nas últimas décadas. Nesse sentido, entre lutas e conquistas, no Brasil e no mundo, o futebol feminino segue sua busca por estruturação, profissionalização, legitimidade e visibilidade.
Para saber mais sobre o tema, conheça o livro Mulheres em Campo: Gênero no Jornalismo Esportivo Brasileiro, escrito por Érika Alfaro de Araújo e publicado pela Editora Appris.
Érika Alfaro de Araújo
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestra em Comunicação e graduada em Jornalismo pela mesma instituição. Realiza pesquisa na linha de Processos Midiáticos e Práticas Socioculturais com foco no jornalismo esportivo e suas relações com a questão de gênero.