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Por João Lister Pereira, autor de O Espelho – A Investigação das Neuroses Sociais do Século XXI

A cultura contemporânea é atravessada por um imperativo de aceleração que invade todos os aspectos da vida social, emocional e subjetiva. A chamada “cultura da correria”, abordada em reportagens recentes de O Globo (2) e UOL (3), além de retratada de maneira sensível na série da Netflix Adolescência (4), encontra uma fundamentação teórica profunda na obra, O Espelho – A Investigação das Neuroses Sociais do Século XXI. No livro, que aqui apresento, a aceleração não é apenas um traço social ou cultural, mas a expressão de uma neurose coletiva que redefine as relações humanas, o tempo subjetivo e o próprio conceito de identidade.

A Cultura da Correria como Neurose Social

Afirmamos na obra que, a sociedade contemporânea instituiu a velocidade como valor ético e estético, transformando a lentidão em um vício e a reflexão em uma ameaça. Essa constatação, que ecoa nos relatos jornalísticos, revela que não se trata apenas de uma resposta funcional à modernidade, mas de uma reconfiguração patológica do viver.

O artigo de O Globo, que replica a publicação de Sol Valls, no La Nacion, identifica a naturalização da urgência em todas as esferas da vida cotidiana: as pessoas não apenas vivem aceleradas, mas desejam ser vistas como eficazes, produtivas e, sobretudo, incansáveis. Em consonância, UOL, por sua colunista, Michelle Prazeres descreve como esse imperativo de eficiência contamina as relações interpessoais, fazendo com que a pressa seja projetada sobre o outro — julga-se não apenas o próprio desempenho, mas também a velocidade alheia.

Em nossa obra, O Espelho, aprofundamos essa análise afirmando que a aceleração sistemática opera como uma defesa contra o vazio interior que a cultura do espetáculo e da comparação incessante produz. Assim, a correria é tanto causa quanto sintoma: ela serve para ocultar o mal-estar difuso de uma sociedade que perdeu a capacidade de presença e escuta.

A Superficialização dos Vínculos

Uma das principais consequências da cultura da correria, em nosso conceito presente em O Espelho, é a superficialização das relações. Nas redes de sociabilidade líquida, a profundidade é um fardo, e a velocidade, uma exigência. As trocas humanas tornam-se transacionais, desprovidas de verdadeira abertura ao outro.

Essa superficialidade se evidencia no ambiente digital, onde conversas são substituídas por mensagens apressadas, reações automáticas e validações instantâneas. As reportagens de O Globo e UOL assinalam que, mesmo nos momentos de lazer, há a pressão por maximizar experiências, gerando mais ansiedade do que prazer.

No livro, interpretamos esse fenômeno como um “colapso da alteridade”: na velocidade extrema, o outro deixa de ser reconhecido como sujeito, tornando-se apenas mais um elemento da lógica de desempenho.

A Série Adolescência e o Espelho das Neuroses Sociais

Em outro giro, temos a consagradíssima série “Adolescência” da Netflix, fenômeno de audiência recente, qual oferece uma representação dramática e realista dessa cultura da correria. Ambientada em um contexto escolar e familiar contemporâneo, ela retrata jovens que vivem pressionados por padrões de sucesso, popularidade e realização precoce — muitas vezes internalizando a lógica da aceleração e do esgotamento.

Cada episódio revela adolescentes lidando com crises de ansiedade, medo de inadequação e uma incapacidade quase total de lidar com o silêncio, a espera e o fracasso. Esses jovens são herdeiros diretos da neurose coletiva que descrevemos em “O Espelho”, sob o conceito de que as novas gerações, expostas desde cedo à pressão da performance e da instantaneidade, desenvolvem identidades fragmentadas e ansiosas.

A série é ainda mais contundente ao mostrar como o ambiente familiar replica essa neurose. Pais e responsáveis — também capturados pela cultura da correria — exigem resultados sem espaço para o erro, impulsionando um ciclo de expectativa e frustração contínuos. Assim, Adolescência ilustra o que restou conceituado em nosso livro, qual chamamos de contaminação intergeracional das neuroses sociais, na qual a ansiedade dos adultos é transmitida aos filhos como herança emocional e invisível.

Caminhos de Resistência

Tanto em O Espelho quanto nas reflexões propostas pela série e pelos artigos jornalísticos, emerge a necessidade de desacelerar. Proponho, no livro, que o resgate do presente exige práticas deliberadas de lentidão, contemplação e disponibilidade afetiva.

Nesse sentido, as práticas de mindfulness, a valorização de momentos de ócio criativo e a reconstrução de vínculos afetivos reais surgem como caminhos possíveis para a reumanização das relações e o enfrentamento das neuroses contemporâneas.

A série Adolescência sugere, de modo sutil, que a esperança reside nas pequenas rupturas: nos momentos em que os personagens param, compartilham suas vulnerabilidades, ou simplesmente aceitam não ser perfeitos — ensaiando, ainda que timidamente, a resistência à lógica esmagadora da correria.

Conclusão

A análise integrada das reportagens de O Globo e UOL, da obra O Espelho e da série Adolescência revela que a cultura da correria não é um problema apenas individual, mas estrutural, exigindo um reposicionamento coletivo frente ao tempo, à produtividade e ao outro. A leitura por mim proposta ilumina as raízes profundas desse fenômeno, permitindo entender que a pressa não é apenas uma escolha, mas um sintoma da própria organização patológica da vida social.

A necessidade de desaceleração, portanto, não é apenas um imperativo para o bem-estar pessoal: é um projeto de reconstrução da própria possibilidade de viver humanamente em meio ao caos contemporâneo.

Sobre o autor

João Lister Pereira é psicanalista, advogado, articulista em periódicos nacionais e autor de O Espelho – As Neuroses Sociais do Século XXI. Pesquisa os impactos psicológicos e socioculturais das transformações contemporâneas.

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