Casais de Mulheres e Uso de Tecnologias Reprodutivas (tr) – Você Sabe o Que é Ropa?
06/01/2022 – Camila Vitule – Autora do livro O Sonho de Ter Filhos: Casais de Mesmo Sexo e Uso de Tecnologias Reprodutivas (Editora Appris, 2021).
De acordo com pesquisa realizada nos primeiros anos da década de 2010 em São Paulo sobre casais de mesmo sexo e uso de tecnologias reprodutivas (TR), as mulheres homossexuais fazem a opção pelo uso de TR em contraposição à adoção para efetivarem o sonho da parentalidade. Isso pelo fato de a gestação ocorrer em seus corpos e a reprodução assistida, assim, ser de mais fácil acesso a elas. O uso de sêmen proveniente de bancos de sêmen também é uma escolha dessas mulheres. A partir desse uso, a futura criança não tem um pai biológico conhecido, não havendo, assim, nenhuma implicação desse pai na criação da criança, havendo a exclusão do “terceiro” indesejado.
Ainda, o uso de TR possibilita que os casais de mulheres se utilizem de uma combinação muito específica para realizarem o sonho da maternidade: a ROPA, ou Recepção de Óvulo de Parceira (Reception of Oocytes from Partner). Mas o que seria isso? A ROPA é um procedimento no qual uma das parceiras gesta o embrião gerado pelo óvulo da outra com esperma de doador. Em termos corriqueiros: é colocado o “óvulo de uma na barriga da outra”. Ao invés de se concentrar a tecnologia reprodutiva em uma mulher (como seria o caso de uma inseminação artificial ou de uma fertilização), o emprego da tecnologia é “dividido” entre as duas mulheres do casal.
Há relatos de procedimentos condizentes à ROPA na literatura internacional (STRATHERN, 1992b; THOMPSON, 2005) e em literatura nacional relatando o procedimento nos Estados Unidos (LUNA, 2007; FONSECA, 2008), contudo sem usar a sigla ROPA para denominar o procedimento. Investigação na Espanha, entretanto, já utiliza a denominação ROPA (MARINA et al., 2010) e produções de autoras nacionais (CORRÊA, 2012; MACHIN, 2014; 2015; 2019; MACHIN; COUTO, 2014; VITULE; MACHIN; COUTO, 2017), também fazem uso do termo.
As entrevistadas pela pesquisa, ao contarem o porquê de preferirem a ROPA ao invés de outros procedimentos (inseminação ou fertilização), trazem que o laço biológico possibilitado pela tecnologia é extremamente importante para elas. Strathern, já em 1992 (STRATHERN, 1992b), afirmava que a colocação do óvulo fecundado de uma das parceiras no útero da outra está relacionada a “acontecimentos naturais”, ou seja, a laços biológicos que estruturam o parentesco no Ocidente: o parto e a transmissão por meio da genética.
As entrevistadas, de maneira geral, colocam a ROPA como promotora de um ideal de filho gerado biologicamente pelas duas mães, assim como acontece em uma reprodução sexuada, com casais heterossexuais. Ela é a via pela qual pode se concretizar a utopia do filho biológico de duas mulheres, o que também facilitaria a aceitação social do casal parental e do próprio filho por seus avós, promovendo uma aproximação a partir da genética.
Mas, no caso da ROPA, genético não seria sinônimo de biológico, como costumamos utilizar em português. As duas mulheres, a partir desse procedimento, estariam ligadas biologicamente à criança concebida, mas somente uma estaria ligada de forma genética: a dona do óvulo. A outra estaria ligada biologicamente através da gestação, não tendo, por sua vez, nenhuma ligação genética com a criança concebida.
Esse arranjo, no início de 2010, promovia a legalização do vínculo filial do bebê produzido com ambas as mães, facilitando os trâmites jurídicos, uma vez que as duas mulheres podiam ser comprovadas como mães da criança concebida: uma via DNA (o que podia ser atestado por um exame de DNA) e outra via gestação e nascimento, pois legalmente é considerada mãe aquela que dá a luz. Havia, assim, a facilitação de uma questão social por uma questão biológica, isso em um momento no qual o registro de crianças provenientes de uso de TR por casais de mesmo sexo ainda não estava normatizado, o que acabou se dando em 2016 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016).
De acordo com as entrevistadas, algumas clínicas de reprodução assistida privadas, no início dos anos 2010, ofereciam o tratamento e também divulgavam a existência dele. Alguns casais relatam saber da real possibilidade de efetivação na própria consulta médica, mesmo já sendo algo hipoteticamente desejado. A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 2013, por sua vez, normatizou a prática da ROPA, que já estava sendo utilizada por algumas clínicas de reprodução. Ainda, as resoluções de 2015 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2015) e de 2017 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017) tornaram ainda mais clara a regulamentação da ROPA, numa resposta à essa demanda social e mercadológica.
Assim, desde 2013 o procedimento da ROPA é normatizado e desde 2016, com a legalização do registro de filhos de casais de mesmo sexo provenientes de TR, a ROPA deixou de ser uma forma de legalização do vínculo filial para as duas mulheres do casal. Mas, o fato de ela já ter sido empregada também com esse fim é bastante importante quando pensamos nas conquistas feitas pelos casais de mulheres para a concretização do sonho de terem filhos.
Gostou? Para saber mais sobre a ROPA e sobre casais de mesmo sexo (tanto de mulheres quanto de homens) e o uso ou não uso de tecnologias reprodutivas para efetivação do sonho de ter filhos, recomendamos o livro Casais de mesmo sexo: casais de mesmo sexo e uso de tecnologias reprodutivas.
Bibliografia:
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM Nº 2013/13. Normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União, 2013; 9 mai. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23788:resolucao-de-reproducao-assistida-&catid=3 . Acesso em: 20 jul. 2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM 2.121/2015. Normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União, 2015; 24 set. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2015/2121_2015.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM Nº 2.168/2017. Normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União, 2015; 24 set. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2168. Acesso em: 20 jul. 2020.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento Nº 52/2016. Dispõe sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Diário Oficial da União, 2016; 15 mar. Disponível em: https://www.normasbrasil.com.br/norma/provimento-52-2016_317508.html. Acesso em: 23 jul. 2020.
CORRÊA, M.E.C. Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade. 2012. 213 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
FONSECA, C. Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco. Estudos Feministas. Florianópolis: v. 16, n. 3, p. 769-783, set/dez 2008.
LUNA, N. Provetas e Clones: Uma Antropologia das Novas Tecnologias Reprodutivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
MACHIN, R. Reproductive technologies and lesbian kinship practices in Brazil. In: RYAN-FLOOD, R.; PAYNE, J. G. (org.). Transnationalising Reproduction: Third party conception in a global world. London and New York: Routledge studies in the sociology of health and illness, 2019. p. 34-47.
Práticas lésbicas e tecnologias reprodutivas: construindo um projeto de filiação. In: IV ENCONTRO NACIONAL DE ANTROPOLOGIA DO DIREITO (ENADIR), 4. GT6 Antropologia, famílias e (i)legalidades. Anais […]. São Paulo, 2015.
MACHIN, R. Sharing Motherhood in Lesbian Reproductive Practices. Biosocieties, v. 9, p. 42-59, 2014.
MACHIN, R.; COUTO, M. T. Fazendo a escolha certa: tecnologias reprodutivas, práticas lésbicas e uso de bancos de sêmen. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 1255-1274, 2014.
MARINA, S.; MARINA, D.; MARINA, F.; FOSAS, N.; GALIANA, N.; JOVÉ, I. Sharing motherhood: biological lesbian co-mothers, a new IVF indication. Human Reproduction. v. 25, n. 4, p. 938-941, 2010.
STRATHERN, M. Reproducing the Future. Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Manchester, Manchester University Press: 1992b.
THOMPSON, C. Making Parents: The Ontological Choreography of Reproductive Technologies. United States of America: Massachusetts Institute of Technology, 2005.
VITULE, C.; MACHIN, R.; COUTO, M. T. Práticas reprodutivas lésbicas: reflexões sobre genética e saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, dez. 2017.
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