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Por Gabriel Freitas, autor de Significados Submersos: A Cultura e a Língua das Orcas

Neste texto, gostaria de fazer uma provocação: quando nos separamos de forma radical dos demais animais que vivem no nosso planeta, estamos fazendo as perguntas certas? Quero propor uma reflexão que nos permita questionar a convicção estabelecida de que outros animais não vivem em um mundo, em um ambiente que, assim como o nosso, é simbólico, linguístico e cultural. Um mundo que é definido pelo entrelaçamento umbilical entre língua e socialização.

Explorando língua e cultura além dos humanos em uma perspectiva ampliada: homologia e analogia

Vamos pensar na língua de uma forma um pouco diferente: como um comportamento que evoluiu e evolui ao longo do tempo e a partir dos conceitos de homologia e analogia. Para entender como a evolução funciona, é muito comum que biólogos mencionem os conceitos de homologia e analogia; homologia basicamente se refere a traços compartilhados derivados de um ancestral comum: por exemplo, a mão humana é homóloga à asa de um morcego, uma vez que ambas derivam de um membro anterior ancestral e carregam exatamente o mesmo número de ossos. Por outro lado, as analogias surgem quando animais geneticamente distantes evoluem independentemente na mesma direção, conhecida como convergência evolutiva.

Figura: Homologia de vários ossos (mostrados em cores diferentes) dos membros anteriores de um humano, um cão, um pássaro e uma baleia.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Homologia_%28biologia%29

O cuidado parental dos Acará-disco, uma espécie de peixe, é análogo ao da amamentação dos mamíferos, mas não é homólogo, uma vez que peixes e mamíferos não compartilham um ancestral que fazia o mesmo. Outro exemplo é como golfinhos, ictiossauros (répteis marinhos extintos) e peixes têm formas muito semelhantes devido a um ambiente em que às suas necessidades evoluíram: um corpo aerodinâmico com nadadeiras para melhor uso da velocidade e capacidade de manobra no oceano.

Como os golfinhos, ictiossauros e peixes não compartilharam um ancestral aquático, e em casos assim dizemos que suas formas são análogas. Podemos aplicar a mesma linha de pensamento ao comportamento e, consequentemente, à língua. Um exemplo marcante disso vem da capacidade de algumas espécies de vespas e primatas de reconhecer rostos. Nesse caso, essa habilidade surgiu de forma independente, como uma analogia, com base na necessidade de reconhecer companheiros de grupos individuais.

No caso da analogia, lidamos então com espécies geneticamente muito longe uma das outras, mas que, ainda assim, desenvolveram a mesma ou praticamente a mesma solução funcional, provavelmente a partir de necessidades parecidas – humanos e orcas têm sociedades grandes e que se baseiam em relações interdependentes, por exemplo. Portanto, podemos hipotetizar sobre traços cognitivos e comportamentais semelhantes. Em outras palavras: a mesma capacidade, ou semelhante, pode surgir em quase qualquer lugar que seja necessária. Nesse sentido, dois outros termos muito comuns da biologia e que podem ser úteis aqui são os de mecanismo e função: é muito comum que animais alcancem o mesmo fim (função) por meios (mecanismos) diferentes.

Os pensamentos de Darwin e Uexküll

Essa ideia se encaixa com as de Darwin há quase dois séculos, sobre como a evolução funciona por meio de descendência comum ou adaptação a circunstâncias semelhantes, havendo portanto uma continuidade entre as espécies. Deve-se inclusive destacar que antigamente o pensamento era comparativamente mais receptivo sobre as habilidades cognitivas e linguísticas de outros animais que não os humanos. O próprio Darwin escreveu extensivamente sobre as emoções humanas e de outros animais, e muitos cientistas do século XIX se debruçaram sobre inteligência superior em outros animais.

O pai da evolução, no seu livro A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, inclusive afirma que a diferença entre a “mente” de outros animais e a mente humana “é uma diferença de grau e não de tipo”. Evolutivamente falando, seria como um milagre se tivéssemos uma habilidade única e sem pegadas evolutivas rastreáveis. O famoso primatólogo Frans de Waal destaca um ponto importante: a busca pela parcimônia cognitiva (no nosso caso, linguística) frequentemente entra em conflito com a parcimônia evolutiva – ou seja, por termos cautela para dizer que outros animais têm consciência e língua, acabamos não pensando de forma evolutiva. Segundo ele, a partir da concepção de mudança gradual entre espécies, pode ser perigoso propor lacunas incomparáveis entre espécies. Como nossa espécie se tornou racional, consciente e dotada de língua se o resto todo do mundo natural, não?

Por isso insisto na provocação: talvez o mesmo valha para a língua e outros animais tenham um sistema de comunicação análogo à língua humana, podendo portanto ser possível afirmar que eles também possuem língua: talvez usem mecanismos diferentes para alcançar, de certa forma, uma função parecida. Essa linha de pensamento segue também a lógica do conceito de Umwelt, do biólogo e filósofo estoniano Jakob von Uexküll. Para Uexküll, precisamos reconhecer que espécies diferentes, embora habitem o mesmo planeta, na verdade vivem em mundos diferentes, ou em diferentes umwelten. Ou seja, como espécies diferentes precisam fazer coisas diferentes para sobreviver, elas desenvolveram uma variedade de estratégias evolutivas para ajudá-las a realizar essas tarefas.

Uma leitura cuidadosa dos trabalhos sobre orcas e outros mamíferos marinhos parece contestar a tese da separação radical entre humanos e o resto da natureza. Por isso, faz-se necessário contribuir para o aprofundamento dos estudos que assumem uma descontinuidade acentuada entre a língua humana e os sistemas de vocalização de todos os outros animais, uma vez que as características funcionais das línguas humanas e as estruturas neurológicas sobre as quais elas dependem são produtos de processos evolutivos análogos que moldaram os sistemas comunicativos de todas as espécies animais. Portanto, para avaliar cientificamente a hipótese de que a língua humana é única na característica de ser, entre outras coisas, o único sistema linguístico-cultural que evoluiu na natureza, faz-se importante que sejam apresentadas evidências para apoiar tal conclusão.

Será mesmo que estamos fazendo as perguntas certas?

Para saber mais sobre o tema, conheça a obra Significados Submersos: A Cultura e a Língua das Orcas.

Sobre o autor

Gabriel Freitas é bacharel em Estudos da Tradução e mestre em Linguística pela Universidade Federal de Ouro Preto. Além de linguista, é tradutor de japonês, inglês e espanhol.

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