por Ninna Nasci, autora de Liberdade Perseguida: Do Sonho Americano a Alguns Meses em uma Prisão Federal
Me chamo Janaina Nascimento, para muitos Ninna Nasci
Vim de uma família como muitas que se espalham Brasil afora, nada privilegiada, daquelas que os pais trabalhavam cedo para comer à noite, cheia de altos e baixos. A vida é pautada em nossas experiências e percepções sobre ela e, desde muito nova, eu tinha certeza de que aquela vida não era o que eu queria para mim.
No ano de 2002, aos 19 anos de idade e com o ímpeto que sempre me foi peculiar, embarquei para os Estados Unidos em direção a cidade de Miami em busca de uma vida melhor, do famoso sonho americano. Na minha chegada, logo após a imigração americana, me esperava um rapaz segurando uma plaquinha com meu nome, me apresentei, me ajudou com as malas e fomos em direção às portas automáticas. Quando elas se abriram fiquei em êxtase com o cheiro daquele lugar, tomada pela adrenalina, eu sentia que tinha chegado muito longe, não em relação a tempo e espaço, mas já me via como uma vencedora e eu só pensava: “Eu consegui”.
O tempo foi passando, um mês virou um ano e, quando me dei conta, 6 anos se passaram. Neste tempo eu vivi coisas maravilhosas, me casei com aquele rapaz que me recebeu com plaquinha com o meu nome, conquistei a tão sonhada cidadania americana, acabei me separando, viajei muito, trabalhei em inúmeros “bicos” até que consegui um trabalho na área de TI, quando comecei a ganhar dinheiro de verdade. Em paralelo, abri uma empresa de produção e produzi shows de grandes nomes da música brasileira com Chiclete com Banana, o Rappa, Exalta Samba… Com os frutos do meu trabalho, comprei uma casa, tirei meus pais do aluguel no Brasil e conquistei muitas coisas que o dinheiro pode comprar, mas como todas as escolhas vem carregadas de renúncias, tive que aprender a lidar com a solidão, a distância e principalmente – e o mais dolorido, com o falecimento do meu pai. A sensação era como se em um piscar de olhos ele tivesse envelhecido e na piscada seguinte ele já não estava mais lá, perdi meu pai.
Aos 26 anos, no ano de 2008, num misto de vontade e obrigação por ser filha única, resolvi voltar viver no Brasil por um tempo, mas continuava com meu negócio de TI nos EUA. Eu achava que minha mãe precisava de mim (ou será que eu precisava dela?)… Na verdade, era um misto de sensações, pois na maioria das vezes eu assumia mais o papel dos pais do que de filha.
No final de 2011 retorno aos Estados Unidos, ainda com minha empresa em TI. Por volta de 2014 uma grande oportunidade profissional se apresentou. Abri uma empresa e entrei no mercado médico. É um mercado fascinante que estava em constante movimento e que eu precisaria estudar e me dedicar muito se quisesse prosperar. Passei a ir em congressos, assistir cirurgias ao vivo, comecei a crescer e encontrei meu lugar. Me tornei conhecida no mercado, a empresa tinha licença para importar e exportar junto ao órgão regulamentador do país, uma licença, diga-se de passagem, bem cara e, nessas alturas, eu já vendia para quase todos os continentes, salvo África. Em pouco tempo, tinha uma boa equipe, um grande estoque e já vendia acima dos 7 dígitos. Agarrei essa oportunidade com todas as forças, mas o que eu não fazia ideia era que isso me levaria do céu ao inferno.
Por volta de 2017 conheci uma nova pessoa e logo fomos morar juntos e, no ano seguinte, ele se tornou sócio investidor da empresa. Eu estava vivendo uma vida muito próspera, tinha dinheiro, nada me faltava, cheguei a fazer algumas viagens de jatinho, ia para onde desejava, tinha tudo que queria, morava numa excelente casa, tinha um relacionamento com o homem que achava que envelheceríamos juntos e estávamos para nos casar. Achava que nada podia dar errado até que em junho de 2019 recebo um e-mail que mudaria a minha vida para sempre. Neste e-mail dizia que eu tinha vendido um produto falso para uma universidade e que o produto havia sido identificado por um médico no momento de uma cirurgia. O meu mundo caiu e aquilo era o começo dos que viriam a ser os anos mais difíceis da minha vida.
22 de julho de 2019
Numa pacata manhã de segunda-feira, por volta das 8 am, recebo uma ligação, me arrumo e saio correndo rumo ao escritório, quando chego lá vejo uma cena digna de filme: o escritório tomado de policiais do mais alto escalão americano Marshalls, FBI e eu estava sendo acusada por distribuição de produtos médicos falsos no Estados Unidos.
Eu havia comprado esse produto fora do país de uma empresa séria, o produto havia passado pelo FDA, agência reguladora ligada ao departamento de saúde do governo norte-americano, tinha sido liberado e entregue em minha empresa. Nem nos meus piores pesadelos eu poderia imaginar que algo estaria errado com aquele produto. Acreditava que aquilo havia sido um engano e eu tentava me explicar sem sucesso. Eu havia sido vítima de uma cadeia de falsificação de produtos médicos e ali começava a destruição de tudo que havia construído nos quase 20 anos de trabalho árduo.
Eu estava sendo processada por uma das maiores empresas do mundo, um processo que durou cerca de 4 anos e cada advogado que procurava era uma fortuna. Só para conversa inicial já cobravam U$5 mil dólares, outro era U$ 20 mil. Paralelamente a isso, fui processada por outra por outra empresa, por uma seguradora e pelo governo dos Estados Unidos. Os advogados chegaram a me custar mais um milhão de dólares, eu via tudo o que havia ganhado se esvaindo, mas nada mais importava, eu precisava provar minha inocência, que havia feito todo processo de importação e venda corretamente e que havia passado por todos os órgãos reguladores americanos e a importação se concretizou sem problemas. O governo dos Estados Unidos me acusava de um crime, mas sem provas para provar que havia sido intencional, diminuíram para contravenção.
No decorrer do processo descobri também que o “namorido”, que era sócio investidor e realizava meu imposto de renda, havia passado a empresa inteira só para o nome dele, mas ele não responderia pelas mesmas coisas que eu já que a empresa sempre foi administrada por mim. Não era nem o momento de eu discutir as razões para isso, tinha problemas muito maiores. A minha vida parou, a depressão foi tomando conta, a minha saúde estava debilitada e já não tinha mais forças para brigar contra os gigantes que me calavam. Eu só queria que aquilo acabasse logo.
Fui julgada, sentenciada a 6 meses de prisão federal e 1 ano de liberdade assistida – e no dia 1 de junho de 2021 eu me entreguei no campo do Federal Correctional Institution, Marianna (FCI Marianna) na Florida.
Tudo tinha sido tão exaustivo que chegar ali significava que tudo estava a caminho do fim e que em breve eu voltaria para minha vida.
Rodeada pela vergonha, medo, solidão e por pessoas tão diferentes de mim, tive que aprender a cozinhar com ferro de passar roupa, barganhar objetos básicos como copo descartável ou colher, comprar toalha para tomar banho e me enxugar em algo que não fosse um trapo encardido, entre outras situações que me assustavam, mas que me faziam aprender. Me reunia para encontros de leitura da Bíblia, me aproximei de Deus e aqueles momentos me davam a sensação de paz e sanidade que precisava para estar ali. Ouvi tantas histórias tristes e difíceis que me tiraram do papel de vítima. Tinha de dar valor àquele momento, era um instante de cura, de renascimento e de reencontro comigo mesma. A prioridade era reorganizar minhas ideias. Decidi escrever, pois a escrita me daria uma direção do que fazer quando saísse de lá, tinha de valorizar aquele momento e olhar com olhos de amor para tudo que eu estava vivendo e aprendendo. Passei a analisar melhor meus sonhos, estava determinada a melhorar e crescer internamente. Eu não podia entrar ali e sair igual, se assim ocorresse, seria como se tudo fosse em vão. Passei a valorizar mais as relações, o pôr-do-sol, as risadas, leituras… Fui retirada do mundo num momento em que o próprio mundo se fechava por conta de uma pandemia assustadora e avassaladora, a Covid-19 – e lá eu vivi e vi coisas que nunca imaginei chegar perto, uma experiência que obviamente eu não queria passar, mas que, entre muitos aprendizados, me trouxe um olhar muito humano ao próximo. Cada noite era um dia mais próximo do recomeço.
Naquele tempo havia sido diagnosticada com DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica) com características bem asmáticas e, por essa condição, neste período tão conturbado no mundo pelo Covid-19, consegui benefício na minha sentença: 3 meses presa, 3 meses de prisão domiciliar e 1 ano de liberdade assistida.
Depois de passar um tempo no campo federal, eu havia recebido a data para ir embora. Nesse dia eu andava pelo campo cantarolando de felicidade, me sentia feliz. Eu não via a hora de voltar pra casa, sonhava em abraçar, beijar e estar com meu parceiro, com meus cachorros e seguir adiante. Eu só queria recomeçar.
O dia de sair finalmente havia chegado. Me liberaram por volta das 6 da manhã e lá estava meu companheiro me esperando no estacionamento. Eu corri muito e entrei no carro como se tivesse medo de que alguém me puxasse de volta para aquele buraco na terra.
Eu estava muito feliz, fomos para o aeroporto e voltamos para a casa em Miami. A felicidade não cabia em mim. No trajeto eu o abraçava, cheirava, era como se eu quisesse entrar dentro dele, mas ao chegar em casa me dei conta que aquela felicidade estava prestes a terminar.
Eu havia sido muito forte até ali, voltar para a casa era sinônimo de poder ser frágil, eu precisava de amparo, carinho, amor, acolhimento, mais do que eu precisava do ar que eu respirava. Eu não tinha estrutura psicológica para aguentar nada mais, mas ali, em menos de 10 minutos, descobri que havia sido traída, na minha casa, na minha cama e eu não estava preparada para aquilo.
Pensei muito se deveria falar porque, a partir do momento que eu falasse sobre este assunto, seria um caminho sem volta. Obviamente eu o indaguei, brigamos, discutimos muito. A traição era incontestável. Passaram-se uns 15 dias ele saiu de casa e eu, sem poder sair, ainda privada da minha liberdade, usando uma tornozeleira eletrônica, fui tomada de sentimentos ruins, dor, medo da rejeição, dos julgamentos, angústia, vergonha, raiva, depressão, chorava muito sempre, fui me isolando e já desacreditada de mim, achava que nunca mais seria alguém. Até que entendi que eu só tinha duas saídas, continuar definhando ou lutar contra o meu maior inimigo, eu mesma.
Se hoje estou aqui, foi porque eu não desisti de mim! Fiz terapia e li muitas coisas da autora Bene Brown que fala sobre a vergonha, vulnerabilidade e liderança. Passei por um processo de autoconhecimento fundamental no qual eu entendi que a história me pertence – e não eu a ela. Me reergui e me reinventei. Entendi que vergonha não prospera na empatia e, a partir do momento em que eu contasse a minha história, eu tirei o poder de especulação do outro. Foi então que tomei posse da minha narrativa e enxerguei que a vida não tinha acabado após tudo, mas estava, de fato, recomeçando.
28 de novembro de 2022
Esta foi a data em que encerrou este ciclo da minha vida com todas as obrigações cumpridas e absolutamente livre de qualquer débito seja com advogados ou com a justiça. Voltei ao Brasil em dezembro e hoje, aos 41 anos de idade dei vida a um livro que se chama “Liberdade Perseguida – Do sonho americano a alguns meses numa prisão federal” e tenho como objetivo, com minha história, ajudar pessoas a saírem de suas próprias prisões e viverem uma vida plena com todas as dores e amores que constituem o nosso ser.