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Por Hilton Boenos Aires, autor de Quando os homens voltarão a viver com os deuses

Em 1945, Ernst Cassirer (sem sombra de dúvidas um dos mais importantes autores do século XX), classificou Nicolau Maquiavel como um autor “técnico” da política. Não chegou a chamá-lo de “pai da ciência política”, mas afirmou categoricamente que seu pensamento era semelhante ao de um cientista (no caso, a comparação foi feita com um “químico” e um “médico”).

Neste sentido, O Príncipe não seria um livro imoral, nem moral, mas “técnico”, simplesmente. Semelhante a um médico, que pode ensinar a matar ou a salvar um paciente; ou a um químico, que mesmo sendo capaz de criar um veneno poderoso, não pode ser incriminado pelo uso que outro alguém faça de sua criação. Assim, Nicolau seria um pensador semelhante ao químico que descreve as reações químicas; ou ao médico que faz o diagnóstico da doença do paciente (sendo pertinente recordar que as metáforas envolvendo a medicina são abundantes em todas as obras do florentino). Ele apenas teria explicado como as coisas funcionam no mundo político, sem se deixar manchar ou influenciar pelos juízos de valor.

Mas antes de Cassirer, pensadores do quilate de um Francis Bacon (1561–1626), de um Spinoza (1632–1677), de um Rousseau (1712–1778), de um Pasquale Villari (1827–1917) e de um Friedrich Meinecke (1862–1954) já haviam, cada um a seu modo, reconhecido um caráter mais analítico, empírico e supostamente desprovido de idealismo moral, que tornaria Maquiavel uma figura fundacional no estudo e na abordagem “científica” da política. O título informal de “pai da ciência política” começou a ser atribuído a ele mais explicitamente no século XX. Entretanto, as bases para tal atribuição foram construídas por essas interpretações anteriores.

Esta interpretação pode ser interessante, mas possui um problema: ela está errada. Não importa qual seja o significado atribuído ao termo “científico”, nem a qualquer noção de “ciência” que se almeje aplicar aos escritos do autor florentino. Se “científico” significa “empírico”, no sentido de um método de estudo dos eventos políticos por meio da coleta e descrição de dados e fatos, a afirmação continua incorreta, porque Maquiavel não coleta nem descreve fatos, mas interpreta palavras, ações, gestos e textos, para poder dar conselhos, fazer previsões e recontar histórias.

Se “científico” pretende significar algo “demonstrativo”, no sentido da concepção inicial hobbesiana da ciência política e da ética como um sistema dedutivo baseado em definições irrefutáveis de nomes, não há nada disto nos textos de Maquiavel, nem remotamente semelhante. Se “científico” significa o método de investigação originado por Galileu, baseado em experimentos, demonstração e generalização, esse modelo também é completamente estranho ao estilo de pensamento Maquiaveliano (Viroli, 1998). Nem se olharmos outra concepção científica da época, relacionada ao naturalismo filosófico propagado por autores neoplatônicos que flertavam com a astrologia e a alquimia, tampouco pode-se considerar o antigo secretário de chancelaria como um autor “científico”.

Maquiavel jamais realizou experimentos. No máximo, aventurou-se em raciocínios conjecturais para prever possíveis resultados de situações políticas. Nunca fez generalizações com base na revisão de um número significativo de fatos; no máximo, apresentou conselhos enquadrados como regras gerais para torná-los mais eloquentes, e reforçou seus argumentos citando exemplos extraídos de histórias antigas, isto é, fatos que já haviam sido literalmente elaborados, ou episódios selecionados da história moderna que ele próprio interpretou, glosou, coloriu e exagerou. Tudo isto seria uma característica de um autor retórico, simplesmente. Jamais um cientista.

Partindo daqueles autores podemos encontrar, além da possível origem da imagem do “Maquiavel pai da ciência política”, outra imagem amplamente discutida, que é “Maquiavel secular”, ou seja, um pensador que separa a religião da política, a “Igreja” do “Estado”. Neste quesito, Spinoza e Meinecke são mais enfáticos quanto ao “secularismo Maquiaveliano”. O tratamento dado por Bacon, Rousseau e Villari é um pouco mais dúbio (embora Pasquale Villari o tenha considerado um pagão e alguém com um profundo “desprezo pela Igreja de Roma”). Cassirer, por sua vez, considerou que Maquiavel nunca tentou separar a política da religião. Pôde ter sido um opositor da Igreja, mas não um inimigo da religião, considerando que a religião é um elemento necessário para a vida social do homem.

Essa questão envolvendo a religião é muito mais espinhosa, conturbada e confusa. Para demonstrá-la precisei de quase 500 páginas, por conta disso, não é possível sequer arranhar a discussão e mostrar a possível solução para o imbróglio. Ao meu ver, podemos encontrar a resposta à questão se deixarmos o próprio Maquiavel falar. Se fizermos uma leitura sistemática de seus textos sua visão a respeito da função da religião na vida do homem aparecerá clara.

Mas para isso precisamos ir além da leitura d’O Príncipe, os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio e as Histórias Florentinas. Devemos mergulhar num mar bibliográfico mais profundo e completamente desconhecido: seus textos íntimos, suas cartas, seus poemas, suas peças de teatro, seus relatórios de missões diplomáticas e seus memorandos. Uma vez que destrinchamos essa biblioteca, veremos um Nicolau Maquiavel com uma feição muito diferente, até mesmo incompatível com o que foi escrito sobre ele (mas não por ele) ao longo de cinco séculos.

Com isto, convido o leitor deste texto a fazer esta jornada. Pegarei você pela mão para levá-lo à Toscana, para conversar diretamente com Nicolau, nosso amigo e anfitrião, que nos receberá amorosamente sob a sombra perfumada dos ciprestes de seu jardim.

Sobre o autor

Hilton Boenos Aires é Doutor em Filosofia pela Universidad Católica Argentina (UCA) e autor do livro Quando os homens voltarão a viver com os deuses: a função do mito e da religião na obra de Nicolau Maquiavel. Pesquisador das obras do grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre e amigo da Fundação Gilberto Freyre, dedica-se também ao estudo das religiões comparadas, da cultura popular, do folclore brasileiro e da história da perfumaria.

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