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Por Jean Batista da Cunha, autor de Auto do Carão: Folguedo das Cirandas Amazônicas

Nas últimas décadas, a região norte transformou suas manifestações folclóricas em palco de eventos de grandes proporções, atraindo cada vez mais artistas de diversos segmentos da cultura local, marcas multinacionais e diversos empresários dos vários ramos comerciais. Entre os mais conhecidos, estão o Festival do Bois Bumbás em Parintins e o Festival de Cirandas, em Manacapuru, ambos no estado do Amazonas, e o Sairé (Çairé) no estado do Pará.

Esses eventos possuem contribuições culturais dos povos nativos e migrantes que ao longo do tempo passaram a habitar a Amazônia atraídos pelas riquezas naturais como os europeus, na condição de escravos como os africanos, ou pelo intuito de prosperidade do extrativismo, no caso dos nordestinos. A Amazônia é um conglomerado de mestiçagem das raças e de hibridização de culturas refletindo no posicionamento identitário do homem amazônida e a relação de poder. Isso fica em evidência nas danças populares, principalmente nas cirandas, a dança de roda que mostra esse conglomerado cultura e que vem ganhando evidências da expansão no mercado cultural.

Trazidas do nordeste brasileiro pelo pernambucano Antônio Felício ao distrito de Nogueira, na cidade de Tefé no tempo áureo da borracha, final do século XIX, a ciranda era uma adaptação das danças nordestinas.  Utilizando o folguedo “Auto do Carão”, era apresentada nas ruas do distrito por moradores da vila como sátira à vida europeizada dos habitantes tefeenses que usufruíam das riquezas dos seringais.

 

 

Em 1937, a ciranda foi levada para Tefé por Isidoro Gonçalves, ex-cirandeiro de Antônio Felício. Isidoro, então diretor do Seminário de religiosos São José, foi o responsável pelas transformações da ciranda. Ele se viu negociando com as autoridades religiosas ao silenciar as críticas humoradas do folguedo, que envolvia a figura de um padre e a ressurreição do carão após sofrer uma emboscada de um caçador. A imagem do padre foi trocada pela de um “rezador”, caboclo com saberes medicinas indígenas.  Isidoro efetuou marcações identitárias nos personagens para homenagear os hábitos dos moradores da floresta, criando personagens, novas canções e até coreografias. Foram eles: Seu Manelinho, pescador pernambucano; Mãe Benta, baiana doceira e cozinheira; Seu Honorato, curandeiro; Galo Bonito, jovem galanteador; Constância, jovem debutante; e Cupido, deus romano do amor.

Mas as principais transformações aconteceram ao chegar na cidade de Manaus nos anos 60, e em Manacapuru nos anos 90. Manaus estava integrada ao modelo econômico global e moderno da indústria, o que abria uma ruptura social e cultural ao estilo de vida da floresta. As cirandas criadas nessas cidades mostravam o homem amazônida como um indivíduo arcaico, subalterno e estereotipado, explicitado na imagem de Seu Manelinho alcoolizado, na representação atrapalhada de Seu Honorato como médico, na invisibilidade candomblecista de Mãe-Benta e a ressignificação do carão, colocado como o vilão da história.

A maneira de ver essas transformações abre um debate sobre o papel das danças populares para as comunidades as quais estão inseridas e da perca de uma identidade ou da maneira em os sujeitos se identificam. É comum discursos saudosistas que rejeitam as últimas transformações como a inserção de alegorias, shows pirotécnicos e do abandono das antigas roupas de chitas e cetins para roupas mais enfeitadas e com tecidos mais caros.

Outras pessoas aprovam as mudanças já citadas, assim como as cadências rítmicas produzidas profissionalmente em estúdios musicais e as coreografias mais refinadas, por produzir inovação e modernidade. Importante frisar que longe desse debate, existem iniciativas que buscam preservar as tradições de ciranda ao mesmo tempo que desfruta da modernização dos espetáculos dos festivais. Algumas iniciativas são tomadas pelos grupos como manutenção da tradição e da história, como ressignificar temas diversos agregando os personagens do folguedo Auto do Carão e até trazendo trechos de canções antigas.

Como um caminho sem volta, o caráter competitivo dos festivais folclóricos, em que se consagra um campeão sob o juízo de jurados de diversos cantos do país, faz com que as cirandas adentrem ao circuito da indústria cultural, transformando suas apresentações em verdadeiros shows apoteóticos. As agremiações folclóricas enaltecem suas celebridades, e não mais seus personagens. As apresentações são exibidas nos canais locais de televisão e pela internet para todo o mundo com o intuito de proporcionar o encantamento de quem assiste.

Na cidade de Manacapuru, no Amazonas, o poder público municipal construiu uma arena chamada “Cirandódromo”, e passou a investir verbas públicas na realização do Festival de Cirandas, impulsionando ainda mais o crescimento comercial das três agremiações folclóricas: a Guerreiros Mura, a Flor Matizada, a Tradicional. Com isso cirandas descaracterizaram ainda mais suas canções, inovando nas coreografias, na construção de enormes alegorias e no luxo das vestimentas. Com a espetacularização de suas apresentações, as cirandas conseguem abordar temas dissonantes e politizados, indo de encontro com os debates atuais como a preservação do meio ambiente, a história na perspectiva do homem amazônida, as atrocidades da colonização europeia e o imaginário das lendas indígenas.

Mesmo com o distanciamento das cirandas de sua própria história, esta consegue se posicionar como parte da cultura do homem amazônida e negociar espaço dentro de um mercado globalizado e homogeneizador, fazendo com os olhares do país se voltem para conhecer as produções culturais dos povos da floresta. Para saber mais sobre o folguedo relatado nesse texto, conheça a o livro “Auto do Carão: folguedo das cirandas amazônicas”, publicado pela Editora Appris.

Sobre o Autor

Jean Batista da Cunha, 37, é professor e pedagogo das redes públicas, da cidade de Manaus e do estado do Amazonas. É especialista em Gestão Escolar e mestre em Estudos Culturais. Faz parte do grupo de pesquisa Laboratório Interdisciplinar de Estudos Culturais pela UFMS e dedica seus estudos sobre as identidades dos povos amazônidas e as manifestações culturais do Amazonas. Coordena projetos culturais, dentre os quais, o Ciranda Viva e a Caravana Auto do Carão, levando a arte das cirandas para as escolas públicas. Atua como produtor executivo da Orquestra Sinfônica da Amazônia.

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