O (Não) Lugar do Corpo Obeso na Contemporaneidade: Paradoxos de uma Época
Por Maria Goretti Machado, autor de A Obesidade para o Obeso: Uma Leitura Psicanalítica
Vivemos na atualidade um aumento de casos de obesidade mórbida. No século XIX, na literatura francesa, a obesidade mórbida é citada como resultado de um grande stress emocional. “Nesta época, era comum, observar a utilização de uma palavra do vernáculo germânico, Kummerspeck, que queria dizer ‘gordo de tristeza’” (LOLI, 2000, p. 20). Hoje, no século XXI, a obesidade mórbida é uma epidemia mundial, chegando a ser mais freqüente e mais grave que a própria desnutrição. A obesidade se tornou um problema de saúde pública mundial, existindo vários centros multidisciplinares na rede pública e privada que objetivam o tratamento.
As causas da obesidade são multifatoriais e complexas, englobando questões orgânicas, psíquicas e sociais, não podendo a patologia ser resumida a apenas uma área do conhecimento. Assim, vários profissionais se encontram implicados com as práticas terapêuticas para a obesidade. Entretanto, a terapêutica idealizada entre os obesos é a cirurgia de redução de estômago. Atualmente, com a facilidade de acesso às cirurgias bariátricas, é possível pensar em uma verdadeira epidemia do emagrecimento fácil, fantasia que impera no imaginário dos obesos mórbidos, a garantia da felicidade perfeita e plena, com a resolução de todos os problemas orgânicos e psíquicos, a partir do ato cirúrgico sem implicações subjetivas.
No entanto, apesar de todos os esforços, tanto por parte dos profissionais quanto dos pacientes, também são frequentes os fracassos. O presente quadro surge aos nossos olhos como um desafio: haveria alguma articulação entre obesidade e pós-modernidade? Qual é o lugar do corpo obeso no mundo contemporâneo? Na tentativa de responder essas perguntas, faz-se necessário refletir sobre algumas características da sociedade pós-moderna.
A sociedade contemporânea vem sofrendo uma série de transformações ao longo da história em decorrência dos avanços na industrialização, das constantes mudanças na informática, do processo de globalização, entre outras. Todos os teóricos se encontram quando, de uma forma ou de outra, falam de uma sociedade contemporânea marcada por muitas fragmentações, ausência de limites e abundância de paradoxos que influenciam tanto no social quanto no psiquismo humano.
A sociedade pós-moderna vai se delineando pela pluralidade de identidades sociais, balizadas pelas múltiplas referencias paradoxais, tendo como marcante o aspecto da descontinuidade e fragmentação. Assim, torna-se necessário ofertar vários objetos que tentam tamponar a angústia dessa condição de efemeridade, mas, paradoxalmente, o aumenta de ofertas de objetos denunciam ainda mais a condição de falta, de carência, de finitude. O consumo passa a ocupar o lugar de organizador da vida, o lugar de garantia de felicidade, de poder sobre as escolhas para gerenciar a própria vida. O consumo não se baseia na necessidade e nem na utilidade, mas é a garantia de liberdade, pois quanto mais se consome mais livre se sente; mas, por outro lado, o consumo é o reflexo da efemeridade. Assim vale a máxima: consumo, logo existo.
Bauman (1998) nos alerta sobre a responsabilidade individual das escolhas, baseadas na “globalização da vida individual” que contribui para a criação de consumidores. Desta maneira a sociedade de consumo disponibiliza diferentes formas de mercadorias que contribuem para criação e aumento das patologias, entre elas a obesidade, que é tratada como uma doença como a tuberculose que no século passado necessitava de isolamento, exclusão. No transporte coletivo, nos aviões não há espaço para o obeso, a numeração das roupas é cada vez menor, o mercado de trabalho as portas se fecham de forma quase discreta, as relações afetivas são prejudicadas, aos obesos ficam reservados os lugares de piadas nos programas humorísticos.
A obesidade é atacada por um julgamento moral perverso dos defensores da saúde, da qualidade de vida. O corpo tornou-se um empreendimento a ser administrado pelas normas do consumismo, não permitindo o questionamento sobre esse “sintoma”, obesidade, que vai além do excesso de gordura. O corpo deixa de ser o lugar do sujeito e torna-se um objeto de seu ambiente, um acessório que pode ser modificado pela medicina sem restrições.
A obesidade traz imagens e significações sociais que a conecta com um lado pesado e lento em contraste com a leveza e a velocidade do mundo contemporâneo. Ser obeso significa ser estranho, descuidado e imoral. Nos dias atuais, o corpo é espetáculo a ser admirado. A obesidade mórbida é exatamente o inverso do ideal pregado pela cultura atual.
A obesidade representa um empecilho à mobilidade tão valorizada na atualidade, servindo como exemplo de inadequação, de falta de iniciativa e devendo, portanto, ser combatida pelos outros e pelo próprio obeso.
Os obesos são consumidores falhos, pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor, porque lhes faltam os recursos requeridos, a liberdade, fluidez, a situação de permanente disponibilidade para qualquer coisa. Contudo, se por um lado é preciso evitar o obeso porque ele revela a falha no sistema, por outro o sistema cria novos produtos somente para o consumo dos obesos.
Essa mesma sociedade que oferece mais condições para o crescimento da obesidade, por ser uma sociedade de consumo, cria formas de combate à obesidade, oferecendo soluções mágicas e rápidas. Para resolver o problema é só criar novas formas de consumo.
As mudanças na sociedade contemporânea impulsionaram um novo estilo de vida, sobretudo uma excessiva valorização da imagem influenciada pelo consumismo, pautado pela “cultura do espetáculo” e do “narcisismo”, oferecendo infinitas possibilidades de objetos a serem consumidos. Na leitura de Lasch (1983) vivemos em uma cultura do narcisismo, onde o mundo estaria centrado no eu da individualidade, sendo essa sempre auto-referente e, de acordo com Debord (1997), soma-se ao narcisismo a exigência do espetáculo como catalisador dos laços. Assim, o sujeito busca sempre a estetização de si mesmo, transformada na finalidade crucial de sua existência. A cultura do narcisismo e a sociedade do espetáculo construíram um modelo de subjetividade em que se silenciam as possibilidades de encontro com o outro e o respeito com suas marcas “defeituosas”. O desejo sucumbe frente à exaltação dos emblemas narcísicos do eu, na demanda de autocentramento e espetáculo.
Esta relação de ódio ao corpo-próprio, e ódio e inveja do corpo desejado é motor do interesse narcísico presente na sociedade de consumo. Frente a esta situação de exigência de performance de um corpo perfeito, o obeso usa as terapias do corpo e da alma como os meios de evasão de si mesmo. Centrado no corpo ideal, afasta-se de sua historia, de sua construção subjetiva e se perde na objetividade da moda cujo movimento é incessante.
O obeso consome todas as formas oferecidas pela sociedade narcísica que lhe dê a promessa de um corpo ideal e perfeito. O corpo se torna mais um objeto de consumo, um objeto distinto do sujeito à disposição da ciência, uma matéria-prima a ser melhorada na qual se dilui a própria identidade. O corpo se transforma cada vez mais em corpo-máquina, sem sujeitos nem afetos (LE BRETON, 2003). O corpo passa então a ser odiado, atacado e transformado pela ciência.
Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS) e especialista em Psicologia Médica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Psicóloga psicanalista (atendimentos adultos e adolescentes). Psicanalista/analista didata membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais (SBPMG/IPA). Docente do Instituto de Psicanálise da SBPMG. Atendimento em grupo operativo a pessoas obesos mórbidos no Projeto Casu + Vida UFMG, no período de 2007 a 2014. Membro da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO).
Orcid: 0009-0005-3596-1957
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
COSTA, Jurandir Freire. Psicanálise e Violência. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FREUD, S. O Inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
KUMAR, K. Da Sociedade pós-industrial: novas teorias sobre o mundo contemporâneo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
LE BRETON, D. Adeus ao corpo. Campinas/SP: Papirus, 2003.
LOLI, Maria Salete A. Obesidade como Sintoma: uma leitura psicanalítica. São Paulo: Vetor, 2000.
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