O que é patrimônio cultural?
Por Carina Mendes dos Santos Melo, autora de Os entornos e a proteção do patrimônio urbano no Brasil e na Itália
Herança. Talvez seja essa a primeira palavra que venha a mente quando falamos em patrimônio. Algo que passa de geração em geração. Algo que se perpetua. Não está errado. Entretanto, quando falamos em patrimônio cultural, a acepção é mais abrangente. Trata-se de heranças coletivas; objetos, lugares e manifestações que são significativas para um grupo de pessoas. Exemplificando, é aquela construção antiga que se mantém como referência na cidade, que muitos conhecem e tem alguma história para contar sobre ela; aquela festa que se realiza todo ano e que faz parte do calendário de um determinado lugar; aquele conjunto de livros significativo para o país; aquelas obras de arte que ajudam a compreender as manifestações artísticas de um povo; entre outros.
Esses diversos elementos, quando reconhecidos como patrimônio, adquirem valor de um bem cultural. Tornam-se referências coletivas, que se deseja preservar e transmitir às gerações vindouras. Podem ser considerados importantes para uma pequena comunidade, para o país ou até mesmo para o mundo, e seus processos de identificação envolvem temas como memória, identidade e valores.
No Brasil, o marco legal que institucionalizou a proteção do patrimônio foi o Decreto-Lei nº 25 de 30 de novembro de 1937, que define em seu artigo primeiro que, “constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” (grifos nossos)
O Decreto-Lei identifica como patrimônio os bens materiais, isto é, tudo aquilo que é tangível, que tem materialidade, artigos móveis e imóveis, além de paisagens, sítios e monumentos naturais; e elenca os possíveis valores a serem identificados: históricos, artísticos, arqueológicos, etnográficos e bibliográficos. Valores sempre notáveis, de excepcionalidade.
O dispositivo estabeleceu ainda o tombamento como instrumento de proteção, inaugurando quatro livros de tombo, nos quais passaram a serem feitas as inscrições desses bens: 1) Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; 2) Livro do Tombo Histórico; 3) Livro do Tombo das Belas Artes; 4) Livro do Tombo das Artes Aplicadas.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216, ampliou a definição de patrimônio cultural, incluindo “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. (grifo nosso)
Com esta redação, a Constituição acolheu o Decreto-Lei n.º 25/37 e incluiu os bens de natureza imaterial como patrimônio. Alargou ainda ao deslocar a noção de excepcionalidade para a de referência cultural, para aqueles bens representativos dos diversos grupos sociais. No entanto, uma política específica voltada ao patrimônio imaterial só foi regulamentada cerca de doze anos depois, pelo Decreto n.º 3551 de 04 de agosto de 2000, que estabeleceu o instrumento do registro como forma de proteção destes bens, instituindo os seguintes livros: 1) Livro de Registro dos Saberes; 2) Livro de Registro das Celebrações; 3) Livro de Registro das Formas de Expressão; 4) Livro de Registro dos Lugares.
A execução da política de proteção federal coube, desde 1937, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN; nome atual do órgão que já teve outros ao longo de sua trajetória. Citamos anteriormente dois instrumentos legais que ajudaram a organizar essa política, mas há outros que complementam o sistema de proteção federal. Cabe lembrar, contudo, que a preservação do patrimônio não se restringe à ação dessa esfera de governo. Conforme preconiza a Constituição de 1988, ela deve contar com a colaboração da própria comunidade e deve ser compartilhada com os governos estaduais e municipais que, muitas vezes, têm seus próprios sistemas de proteção. Registre-se ainda que, no âmbito mais amplo, há os bens considerados patrimônios mundiais, reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, UNESCO.
Agora, será que o reconhecimento de um bem como patrimônio cultural deve partir necessariamente de uma ação estatal? Afinal, quem diz o que é patrimônio?
No filme Os narradores de Javé, de 2003, uma pequena cidade no interior do nordeste tem sua existência ameaçada pela construção de uma usina hidrelétrica. Sim, ela vai desaparecer, ficará submersa pelas águas da represa. Os moradores então, na tentativa de salvá-la, têm a ideia de escrever a história da cidade para mostrar às autoridades o quanto ela é importante. Diz o personagem Zaqueu:
[…] só não inunda se for patrimônio […]. Vamos nós mesmo, hoje, escrever a grande história do Vale de Javé. Vamos colocar no papel os enredos, gente, desencavar da cabeça os acontecimentos de valor, botar na escrita, fazer uma juntada de tudo que é importante, pra provar pras autoridades porque Javé tem que ter tombamento. [sic]
Os moradores de Javé sabiam como solicitar o tombamento, bastava organizar um dossiê, “um trabalho científico”, nas palavras de Zaqueu, explicando por que a cidade deveria ser tombada. Essa ação ativa dos moradores para salvar sua própria história e seu espaço de vida é totalmente legítima e apropriada a uma democracia e é nesta direção que os debates mais recentes no campo do patrimônio têm caminhado, isto é, pensando em como ampliar a representatividade do acervo protegido, bem como em meios de tornar a população cada vez mais protagonista nos processos de identificação e gestão destes bens, atribuindo ao Estado o papel de mediador. Assim, talvez fosse interessante aos moradores de Javé contar com o apoio das próprias autoridades para narrar sua história, para auxiliar na elaboração do “trabalho científico”, bem como para orientar quais os caminhos possíveis para o salvamento da cidade (que não necessariamente estaria restrito ao tombamento). Mas, neste caso, perderíamos a diversão do filme, né?
Carina Mendes dos Santos Melo é arquiteta e urbanista. Possui doutorado em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal Fluminense, com período sanduíche de estudos na Università degli Studi di Napoli Federico II, na Itália, e possui mestrado em arquitetura, área de concentração História e Preservação do Patrimônio Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É servidora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e professora no curso de arquitetura e urbanismo na Universidade Estácio de Sá.
Leis citadas:
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Rio de Janeiro, 1937.
BRASIL. Decreto nº 3551 de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Brasília, 2000.
Para saber mais:
Site do IPHAN: www.iphan.gov.br
IPHAN. Educação Patrimonial: Inventários Participativos. Manual de Aplicação. IPHAN: Brasília-DF, 2016. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/inventariodopatrimonio_15x21web.pdf, acesso em 25/01/2022.
Filme: Narradores de Javé, Drama, Brasil, 2003, 100 min., COR. Direção: Eliane Caffé.
MELO, Carina Mendes S. Os entornos e a proteção do patrimônio urbano no Brasil e na Itália. Curitiba: Appris, 2022.
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