Um Conto de Halloween
Por Frederico Escorsin, autor de Um Conto de Halloween: O Coração da Faraó
Laura estava definitivamente perdida. Ao invés dos fundos do clube, onde acontecia a festa anual à fantasia, a menininha se viu imersa em um bosque sinistro, todo salpicado de fogos fátuos e abóboras sorridentes. As árvores pareciam vigiá-la, cada uma mais retorcida que um buquê de cobras agonizantes.
Laura gemeu um princípio de choro e abraçou sua abóbora de plástico cheia de doces contra o peito. Ela havia seguido um gato preto na direção dos arbustos e árvores ao fundo do campo de futebol e, em menos de um minuto, perdera de vista não apenas o gato como o próprio clube.
Como era possível?! A bruxinha de rosto pintado de verde, vestido preto, chapéu pontudo e sapato de fivela dourada girou em torno de si mesma, tentando achar o caminho de volta, mas não encontrou nenhum sinal das luzes da festa ou do burburinho dos adultos. Como em apenas dez passos ela conseguira se perder tanto assim?!
– M-mamãe? P-papai? – sua voz pingava medo. – Mamãe? Pap…AAAAh! – berrou ao ver um par de olhos vermelhos mirando-a de longe.
Entre as árvores iluminadas pelas abóboras e pelas chamas azuis, estava uma jovem de olhar vidrado, cada íris fixa em Laura. Apesar da luz ambiente revelar várias cicatrizes pelo corpo e ataduras pelos braços, pernas e até no rosto, não foi nisso que a atenção da menininha se focou. E sim nos dois imensos facões no lugar das mãos.
O sangue de Laura gelou e um calafrio desceu da cabeça aos pés. Ela conhecia aquela figura. Era Pesadelo, a Assassina com Mãos de Facão! Lucas havia lhe contado que a cada noite de Halloween, a zumbi voltava do inferno com o único objetivo: aumentar sua coleção de pedaços humanos. Sabendo da preferência por mãos, a menininha nunca foi tão consciente da sua palma, dorso e cinco dedos.
De repente, sem qualquer aviso, a assassina saiu correndo desembestada em direção à garota, as íris flutuando contra o fundo branco. Laura faltou cuspir o coração. Berrou a plenos pulmões e saiu em disparada por entre as árvores. O som da criatura se aproximando foi agourento, o rush-rush da grama e as bufadas cada vez mais próximas às suas costas. Laura arriscou uma olhadela. Foi um erro. Não percebeu uma raiz, tropeçou e caiu feio de borco, ela e seu balde, os doces se espalharam pelo gramado.
A menina rolou de barriga para cima. Pesadelo estava parada de pé sobre ela, feito uma torre negra, seus olhos fixos por entre cabelos lisos desgrenhados, a respiração ofegante, as lâminas reluzindo em azul e amarelo.
– So-so-socorro! – a menininha chorava copiosamente, lágrimas descendo pela maquiagem verde.
Pesadelo dobrou o tronco e aproximou uma das lâminas na direção de Laura. A menininha ergueu os braços para se proteger, chorou ainda mais, mas a criatura não parou. Foi se aproximando, se aproximando, se aproximando até que… TCHUF! …fincou a ponta do facão em um Serenata de Amor, caído ao lado da orelha de Laura.
A menininha soltou um berro, se levantou e se afastou, apenas para ver a zumbi se pôr de cócoras e enfiar o bombom com embalagem e tudo na boca. Mastigou, cuspiu o plástico no chão e engoliu o conteúdo. Espetou um Batom e refez o processo.
– Vo-você não quer me matar? – Laura perguntou, tensa. Pesadelo mirou a garota com uma expressão de “ahn?”, com as bochechas estufadas com Sonhos de Valsa. Sacudiu vigorosamente a cabeça em uma negativa.
– Vo-você é… Você é boazinha? – ela arriscou. Pesadelo abriu um sorrisão de espremer os olhos e assentiu, seus longos cabelos negros se sacudindo.
– Oh… – por essa Laura não esperava. Agora que via de perto, a zumbi até que era bonitinha. Usava um vestido preto todo costurado com remendos e calçava sapatilhas-boneca. Seu rosto, com ataduras na testa e por sobre o nariz, era todo riscado por finas cicatrizes.
– Ah… Então… Então você poderia deixar um pouco dos doces para mim? …P-por favor?
Pesadelo arregalou os olhos, subitamente consciente de suas ações. Apontou para os doces com a ponta do facão e depois para a menina, que respondeu:
– Sim, são meus. Pode pegar um pouco, não tem problema, mas não pega tudo…
Pesadelo não espetou mais nenhum doce. Fez que “não” com as lâminas, o rosto cheio de culpa.
– Tá, então se não for comer mais, me ajuda a pôr de volta no balde? – a menina pedia com toda a educação do mundo. Pesadelo abriu outro sorrisão e assentiu. Laura havia acabado de pôr o balde no gramado e se abaixado para pegar um Ouro Branco quando Pesadelo, usando a lateral de suas lâminas como espátulas, jogou os doces para cima um a um com extrema velocidade.
– Ei! – mal Laura reclamou, caíram os bombons todos dentro do balde. – Oooh! – ela exclamou. – Que legal! – seu rosto estava radiante. Pesadelo sorriu orgulhosa.
– Você sabe outros truques? – Pesadelo assentiu. – Ah, eu queria ver, mas preciso voltar. A mamãe e o papai devem estar preocupados… Você sabe onde fica o clube?
Pesadelo se pôs de pé, coçou a nuca com as costas de uma das lâminas e olhou em volta. Mirou a menina e abriu os braços em um “sinto muito, não sei…”.
– Ah… Então você me ajuda a achar alguém para perguntar o caminho?
Pesadelo pareceu um tanto desconcertada, como se Laura a tivesse chamado para subir num palco, mas assentiu mesmo assim. Caminharam as duas até encontrarem o que parecia ser uma cidade de mausoléus.
– Aqui é um cemitério? – perguntou Laura. Pesadelo confirmou silenciosamente.
– Você é muda? – Pesadelo confirmou silenciosamente.
– Por quê? – Pesadelo deu de ombros.
– Ahn…
Não avançaram muito, alcançaram a borda do bosque, onde uma ladeira de grama cheia de lápides descia e terminava em um gigantesco aglomerado de barracas amarelas. Luzes, cores, música… Não era uma feira, mas um festival! Famílias de monstros e outras criaturas estranhas curtiam piqueniques ou se divertiam correndo e jogando bola por entre as lápides, todos rindo. O rostinho de Laura se iluminou.
– Que legal! Parece um desenho animado!
Pesadelo desviou a atenção por um segundo, tensa diante de tanta gente, e, quando se deu conta, Laura havia sumido. A zumbi arregalou os olhos, girou em torno de si e a encontrou a uns vinte passos de distância, perto de um gato preto, abordando a família de esqueletos. Estava às costas de “papai esqueleto”, prestes a cutucar seu fêmur (como se para testar se era de verdade) quando o monstro reparou nela.
– Oh, uma bruxinha, hehe! Que fofinha!
Laura não se intimidou. Abriu um sorrisão, estendeu seus baldinho à frente e disse:
– Doces ou travessuras!
– Owwwnnn! – o pai esqueleto se derreteu todo. Apanhou uns bombons de dentro de uma abóbora de verdade e os entregou à menina.
Pesadelo só faltou enfartar. Era de conhecimento geral que se um humano ingerisse qualquer comida do mundo dos mortos passaria a fazer parte dele para sempre! Se Laura sequer lambesse uma caveira de chocolate ou uma aranha de frutas vermelhas, nunca mais veria seus pais! A zumbi acelerou na direção da menina, mas foi sumariamente cercada por um grupinho de adolescentes.
– Uau! Que cosplay irado! – disse um lobisomem de jaqueta vermelha e brinco.
– A gente pode tirar uma foto? – pediu uma fantasma, mas uma zumbi de maria-chiquinhas já os estava puxando para uma selfie. Pesadelo tentou ver onde estava a menina, mas o flash em seu rosto a cegou. – Valeu, moça! Parabéns pela fantasia! – os adolescentes se afastaram, deixando a zumbi vendo luzes.
Pesadelo coçou os olhos com os antebraços e quando buscou Laura, a menina havia desaparecido novamente. E dessa vez para valer. Ela não estava no gramado. Pesadelo entrou em pânico. Saiu correndo olhando em volta e, quando deu por si, estava atrás das primeiras barracas da feira. Engoliu em seco, criou coragem e entrou.
Foi como se a tivessem jogado dentro de uma caixa e sacudido. Tudo era demais. As cores, os sons, os monstros… Pesadelo tentou se controlar e buscar a menina. Avistou-a ao longe, novamente pedindo doces, dessa vez a um casal de fantasmas (os doces atravessaram o baldinho e sumiram chão abaixo).
Pesadelo não notou a cauda do gato negro esgueirando-se por entre as barracas. Ao invés disso, saiu correndo desembestada, esbarrando aqui e ali nos transeuntes.
– Ei! – uma faraó de cabelos verdes e mãos de caveira reclamou, mas Pesadelo já se afastara.
A zumbi estava para alcançar Laura quando outro grupo de monstros a abordou pedindo fotos. A expressão dela não poderia ter sido mais eloquente: “ah, não! De novo, não!” Abraços não solicitados, flash, luzes… cadê a Laura?
E assim foi, Pesadelo correndo desesperada, vendo Laura à distância, apenas para ser abordada por fãs. Sem que fosse sua intenção, sua popularidade foi aumentando. Cada vez mais pessoas surgiam para pedir fotos e cada vez mais Laura se distanciava, ela e o gato. Pesadelo se sentiu zonza.
De repente, um grupo de “Pesadelos” se aproximou, informando que o prêmio de melhor cosplay seria anunciado em breve. – Vamos! Vai ser no palco principal! – disse uma zumbi com “facões” de papel alumínio no lugar das mãos, as originais penduradas na cintura se movendo animadas.
– Ah! Ah! Ah! – Pesadelo tentou se explicar, mas é difícil com apenas uma vogal. Quando deu por si, estava cercada por um sem-número de “si mesmas”. Havia “Pesadelos” para todo o tipo de gosto: esqueletos, zumbis, fantasmas, lobisomens, monstros de lama… Um esqueleto de cartola e bengala comandava o show:
– Senhoras, senhores e Pesadelos! – a plateia riu e o esqueleto foi agradecendo a presença e participação de todos. Pesadelo pulava no mesmo lugar tentando ver além da multidão. – …e com meus amigos “morcegolhos” acompanhando cada cosplayer, após a contagem de pedidos por fotos, temos uma campeã! – disse o esqueleto e vários globos oculares com asas de morcego surgiram em uma revoada ao redor dele. – Façam as honras, meus caros!
Sem hesitar, seguiram todos para cima da única e verdadeira Pesadelo, que girava em torno de si mesma em agonia. A garota só percebeu que ganhara o concurso quando os morcegolhos a guiaram para o palco.
– Ah? – ela fez ao ver o caminho se abrir, os monstros lhe dando passagem feito Moisés abrindo os mares.
Pesadelo hesitou até perceber que lá em cima teria uma visão privilegiada. Ergueu as sobrancelhas e avançou por conta própria. Subiu as escadas e olhou em volta. O esqueleto de cartola se aproximou, fez um pequeno discurso sobre a qualidade da fantasia e interpretação, fez algumas perguntas, mas Pesadelo só tinha olhos para a feira, em busca de Laura.
– Ah? – ela fez, finalmente notando a figura de cartola ao seu lado.
– Hahaha! Mas ela não sai do personagem! Isso é o que eu chamo de comprometimento! É de fato a merecedora do prêmio! – esticou a bengala e os morcergolhos trouxeram um facão dourado em um pedestal de madeira, apoiado em suas “cabeças”.
Pesadelo arregalou os olhos. Não para o prêmio. Laura estava sentada numa tumba, puxando uma caveira de chocolate do baldinho e lambendo os beiços. Pesadelo olhou ao redor e viu o troféu. Não hesitou. Passou uma lâmina na horizontal, o facão dourado voou do pedestal e, com um chute circular perfeito, a zumbi lançou o objeto feito um míssil na direção de Laura.
A menina abriu a boca e estava para dar uma bela dentada no chocolate quando um borrão dourado passou por ela e o doce sumiu de suas mãos.
– Ué?! – ela o procurou primeiro no baldinho, e depois ao lado, onde o viu espetado contra a coluna de uma barraca. – Eita! – foi até lá e arrancou a lâmina da madeira com esforço, seu rosto franzido tentando entender de onde aquele objeto havia surgido.
Nesse meio tempo, Pesadelo havia dado um salto mortal de cima do palco, para a surpresa de todos, pulado de cabeça em cabeça pela plateia (“ai, ui, ai…”) e alcançado a menina.
– Ah, oi, Pesadelo! – Laura sorriu cheia de inocência, a plateia mais do que confusa à suas costas. – Quer um chocolate? – a menina puxou um do balde e o ofereceu.
Pesadelo negou, sua expressão preocupada. Fez um “me segue” com a lâmina e a menininha saltou da tumba com o balde cheio de doces.
– Ah, você achou o caminho de volta? – Pesadelo fez que “não” com a cabeça, o rosto tenso. Foi quando finalmente viu o gato. Os dois trocaram olhares por um segundo antes de Pesadelo fechar a expressão e o bichano arregalar os olhos e se mandar. Pesadelo apertou os lábios e fez sinal para que Laura a seguisse. A menina obedeceu. Voltaram até o bosque, penetrando nos recônditos mais sombrios até acharem uma casa feita de doces.
– Ahn… Essa não é a casa da bruxa má? – Laura hesitou.
Pesadelo olhou para ela com o rosto zangado e confirmou. Laura entendeu que a bronca não era com ela quando a zumbi não bateu à porta; cortou-a ao meio e entrou na casa batendo os pés. Voltou empurrando a bruxa lá de dentro de espetada em espetada na bunda.
– Tá, tá, eu levo a garota de volta, que coisa! Eu só queria alguém para me ajudar na faxina! Você tem noção da quantidade de formigas que aparecem aqui? – Pesadelo bufou feito um touro. – Hmpf! – a bruxa bufou de volta, se empertigou toda, mas obedeceu mesmo assim. Virou um gato preto e lançou um olhar típico felino como quem diz “sigam-me, humanos inferiores”.
Laura esticou o rosto em surpresa, mas depois de tudo o que viu essa noite, logo assimilou a situação. Seguiram o gato até que, aos poucos, o som e as luzes da festa à fantasia tomaram o ambiente. Pesadelo mirou o gato com ferocidade e o bichano entendeu a mensagem. Deu meia-volta e sumiu arbustos afora.
– Muito obrigada por me trazer de volta, dona Pesadelo! – Laura falou feliz ao ver os postes com as lanternas coloridas.
Pesadelo se abaixou e sorriu. Laura deu um abraço apertado, para a surpresa da zumbi, que retribuiu o gesto com carinho (e todo cuidado para não ferir a menina).
– Pode ficar com meus doces – ela ofereceu e a zumbi ergueu as sobrancelhas. – Por você ter me salvado. Pesadelo abriu um sorrisão e deu um beijinho suave na bochecha da menina, que sorriu de volta.
– Laura! – seu pai e sua mãe apareceram correndo. – Por onde você esteve?! Você sumiu!
– Ah, eu estava com a minha amiga Pesad… ah…
Laura olhou para trás, mas Pesadelo havia desaparecido. Olhou para sua mão e viu a lâmina dourada. Sorriu e sussurrou:
– Adeus…
Frederico Escorsin é ilustrador e servidor público vivendo em Brasília com a esposa, o filho e o cachorro. Nasceu no milênio passado em algum lugar em Minas Gerais (que ele não lembra onde), cresceu no Rio de Janeiro, morou no Mato Grosso e agora não sai mais da capital. Gosta de desenhar e escrever (o que não é lá muito surpreendente considerando esse livro) e tem tanta porcaria na cabeça que a única forma de pôr para fora é… adivinhem só… desenhando e escrevendo.
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